Aposentadoria
( o começo do capítulo 01 de Paixões Fevereiras)
Meu primeiro topless, penso comigo. O sol tecnicolor ilumina a pele dourada de braços, barriga e pernas.
Impiedoso, ele acende o tom branquíssimo dos seios penitenciados ano após ano pelo severo enclausuramento. A brisa do mar é suave e faz meus pelos eriçarem.
Daqui do quintal dessa casa simples, desde quando me mudei, vivo apenas comigo cada dia de uma vez. Daqui do pequeno paraíso, onde o tempo é fluxo de marés e
tudo parece em estado intocado desde o mais remoto gênesis — a potência do oceano em sua imensidão exuberante —, eu posso e devo ficar nua. Não fico completamente, entretanto. Apenas os seios transgridem, já um tanto murchos, não obstante o desbotamento virginal. Setenta e dois anos experimentados e ainda esse olhar furtivo para o próprio sexo. Estou apenas com a calcinha do biquíni. Vou reclinar esta espreguiçadeira de plástico, deitar como se estivesse no deck de uma piscina impossível no quintal — sua pequena área gramada e, próxima ao arbusto de gerânios, aquela pitangueira no canto esquerdo.
O muro que cerca o terreno é de alvenaria branca e altura média. Há três
linhas de varal atrás de mim, é a explicação plausível para os sonhos com resquício de sabão e alvura, durante os breves cochilos que ponho pra secar nos fundos da casa, em detrimento ao conforto da varanda à beira-mar. Se bem que no último sonho o teatro tinha cheiro de carpete ligeiramente embolorado — entro devagar, sem entender por que estou nervosa. Sento e aguardo as luzes se apagarem, enquanto a sirene toca indicando o início do espetáculo. No palco pesadas cortinas de veludo azul-marinho se abrem e a estranheza começa antes que se escute o primeiro acorde, o primeiro ver-
so — todos os músicos estão nus. Todos. O público foi vítima de trapaça, o engodo é indiscutível. Em vez de bossa nova, recebem rosas e poesia concreta, dadaísta,
pornográfica, gritos de protesto. Há pessoas da plateia de pé em suas cadeiras e gritam ferozmente pragas e esconjuros:
“Viados! Filhos da puta!” — a grande maioria sai em retirada — “Bando de vagabundos!”. Apesar de encolhida no assento, eu com dezoito anos em flor permaneço resoluta em assistir até o fim ao espetáculo, tentando ignorar os que começam a deixar o teatro e olham indignados em minha direção, certamente exi-gindo que também me posicionasse. Mas sem dar satisfações à audiência evadida do sonho, fixo o olhar no palco. Sinto-me absorta, um pouco ébria. Esqueço de mim. Um artista toma o microfone:
Já fui onça-pintada, lembrei
Dia desses, ao lamber minha cria.
Dizem que o dinheiro é rei
Mas a felicidade é moça e é rainha.
Minha origem fêmea, malvista alegoria,
Ficou escondida em dourada caixa secreta
Guardada por irmandade na Bahia
Que protege a quem só de ser, peca.
De repente, pelos olhos de Cristo enxerguei,
Do mesmo sexo da luxúria,
Vem a maternal placidez.
Entendi que tudo em mim é falsa assimetria:
Puta ou asceta,
Mulher é tudo bicho e perfumaria.
O calor me impede de ver as cortinas cerrarem. É gostoso acordar suada de sol matutino. Atrás do muro consigo vislumbrar o terreno de coqueiros, marimbondos e mato, até a mínima estrada de terra que liga essa e outras casinhas esparsas ao asfalto e, por conseguinte, ao vilarejo mais próximo, onde faço mercado.
Às vezes sento na praça para um sorvete na quintessência da gula, o gelato açucarado que não alimenta nem mata a fome, embora distraia e acaricie as papilas gustativas com sabor pegajoso, aguça o prazer no gosto da desobediência às ordens médicas. Desde a mudança permaneço em solidão encantada, tocando com a ponta dos pés o chão que se move. Sinto que a casa não participa do mundo, sendo, ela própria, ilusão produtora de vertigens, oásis traiçoeiro que, uma vez ao alcance dos dedos, se afasta outra vez dos beduínos trêmulos de sede — meu próprio deserto. Uso apenas a calcinha azul do biquíni e tomo uma taça de vinho branco geladíssimo. Ainda me espanto ante as cenas que produzo, refletindo sobre tudo, depois de longa estrada acompanhada por tantos outros, e agora vivendo comigo mesma planos cuja força poética não passa de uma piscadela do melhor cinema italiano, escrito, dirigido e interpretado ao mesmo tempo.
É um alívio ser velha. As doenças, o corpo a murchar, cabelos embranquecendo, nada disso me assusta. Enche-me de agonia apenas a possibilidade da morte antes que eupossa, solitária, conversar e conhecer qualquer estado pretenso de liberdade — a urgência chegou assim, de repente. Eu-jovem não conseguiria sequer imaginar envelhecer. A vida seguia em urgência de futuro, certa angústia comezinha com o presente, até um dia acordar em São Paulo, no apartamento à espera de reforma, e perceber que não queria mais visitar exposições ou amigas, nem ir ao cinema, ao teatro, ao melhor italiano do Bixiga, ou ver qualquer maravilha urbana que costumava me cevar do impalpável necessário. A ideia de ficar confortavelmente instalada sozinha, por outro lado, preencheria o coração. E então a casa de praia veio materializar minha nova idade com ares de retiro espiritual — “Uma extravagância!”, disseram à época os filhos das amigas, todos adultos, todos ainda me chamando de tia. Mas, assim como para as crianças, o capricho de uma velha senhora geralmente é visto com olhar de doçura e complacência. Acharam todos que rapidamente a tia Leila cairia em si. De todo modo as reprimendas não soavam agressivas.
Minha face agora começa a perder os traços. As idiossincrasias da cara dão lugar, de pouco em pouco, a borrões de um rosto universal que diz velha, não mais Leila — eles quase não notam a sobrancelha arqueada em sarcasmo.
Também é verdade que essa invisibilidade me apraz como a polpa suculenta da fruta que colho após longa semeadura.

