Convite para um show
Às vezes, tiro os dados móveis e o wifi do celular. Em casa, jogo o celular numa gaveta, e na rua, levo para se precisar de um…telefone. É bem folgado de minha parte! Se preciso de um mapa indo para algum lugar, ou combinar algo, socorro-me no celular de meu companheiro. E nem que seja por 10 minutos, isso acaba acontecendo. Portanto, não se trata aqui de uma epifania offline nem da receita definitiva para escapar da internet. Eu não descobri Atlântida alguma, mas insisto em experimentar abrir espaços, pois a colheita de bem estar é extraordinária. O extraordinário a que me refiro, sempre bom ressaltar, vem de viver as coisas com inteireza, não de grandes gestos em busca de iluminação. No sábado, vi filmes, cozinhei, arrumei a casa, bebi cerveja na varanda. No domingo, fomos a um campeonato de futebol de meu filho. Nestes dias prosaicos, vividos sem a interferências de estímulos externos, o mundo se recolheu a um volume suportável, como quando desligamos um ventilador barulhento e ouvimos o silêncio da noite.
Foi nessa atmosfera de quietude que revi um trecho de O Show de Truman. O filme conta a história de Truman Burbank (Jim Carrey), um pacato corretor de seguros, que vive, sem saber, um reality show permanente. As câmeras, e os olhos de milhões de telespectadores em todo o mundo, acompanham 24h por dia a vida de Truman, desde seu nascimento, na fictícia Ilha de Seahaven. Seus familiares, esposa, amigos, colegas de trabalho e demais habitantes da cidade fazem parte de um elenco. São pequenos indícios que o levam a questionar a realidade harmônica em que vive. Espantada, lembrei da primeira vez que a vi a cena em que ele escova os dentes sem saber estar sendo filmado. Numa dessas viagens de memória que deixariam Proust orgulhoso, eu lembrei de quando a ideia de uma vida permanentemente sob a luz pública me parecia um absurdo, um horror absoluto. O mesmo se deu quando vi a primeira edição do Big Brother Brasil: o que mais me causava curiosidade, na época, era como conseguiriam manter a sanidade sem um contraponto privado, íntimo, por meses.
Hoje, o espanto se dissipou. Mas é importante recuperá-lo, recolocar as coisas no seu lugar. Perceber, como Truman, de que não podemos viver como peças publicitárias ambulantes, fazendo de nossas vidas privadas, e da gente, no fim das contas, uma vitrine de consumo.
Tomar as rédeas, estabelecer limites na relação com o digital, criar rotinas longe deste Grande Olho, é viver não nos bastidores da vida, mas no show real. Basta iniciar uma rotina com respiros analógicos regulares para perceber que as coisas pequenas e grandes, íntimas e públicas, continuam não só acontecendo com uma dignidade quase comovente, como somos capazes de dimensionar melhor o contorno entre elas. Este é o convite.

