O Parto
Às 08 da manhã de um dia frio e seco, Ana acorda com uma pontada de dor na
lombar que exala quentura por todo o corpo. Acordou langorosa. No banheiro,
vê um fiapo de sangue na calcinha. São os sinais, pensa, e volta do banheiro
para a cama. A noite toda sonhou com mulheres que lavavam roupa no rio
caudaloso. No começo, era ela seixo afundando em ritmo pendular,
curiosamente intacto à força da correnteza. Depois tornava-se tronco boiando
no rio, sentia o arrepio da noite, o medo do encontro violento com as pedras
que apareciam no seu caminho como obstáculos fatais, até que em determinado
momento notava a força das águas e só, era o rio. Sentia a terra que caía das
margens entrando pelos ouvidos, os peixes percorrendo as narinas, corpo sem
extremidades que largueava a cada solavanco do percurso, quero o mar desde
antes, sou rio para querer mar, quase berra ao abrir os olhos. Seca, segura, enrola-se nas
cobertas, fecha os olhos e ainda é um pouco rio, liquefaz em âmago do rio, o núcleo plasmático das águas que correm, como cobra de mil peles que se renova incessantemente, a pele sempre outra, a cada instante.
A água quente do rio é penetrada por fluidos gélidos cintilantes, a
língua-água treme ao sentir o sal do fim do mundo enquanto corre, escuta o
som da imensidão, sente o deságue próximo e a ameaça de aniquilamento no
encontro. Caso sobreviva, estará desintegrada nas profundezas do oceano. As
águas não voltam, não se desviam, não se importam em ser nada, e ela não
precisa participar dessa junção terrível, o nada depois do extermínio e antes da
gênesis estou sonhando, é isso. A angústia lhe faz voltar a ser carne, o corpo
rearranjando os átomos, descolando-se do rio. Posso ficar na margem, agarra
o fio de consciência, ela está na margem. Acorda. Outra vez, a sensação cálida
irradiando pelas costas. Entre um bloco e outro de quentura, a secura do dia e
só. Falta muito, espera a inevitável violência – há ansiedade e
confiança. Senta-se à mesa posta de café da manhã pelo marido, belisca um
pouco de mamão e não lhe fala das dores. A televisão está ligada, um
presidenciável morreu de acidente misterioso, a atriz apareceu na premiação
de cabelos louros, a bolsa de valores está reticente, há um protesto na Índia.
Resolve tomar banho quente, leu na internet que é bom para confirmar o início:
caso as dores diminuam, isso é nada. Na água entretanto as ondas de dor se
adensam e espalham, penetram o baixo ventre como agulhas finas. Isso é
nada, conclui para si em voz baixa ou pensamento. Batidas à porta. Ana, tudo
bem? Preciso de um pouco de paz. Foi ele quem decidiu primeiro, agora ela
está só. Tarde de domingo vendo filme bobo no cinema, Sérgio sussurrou em
seu ouvido: “Vamos fazer um filho, Ana.” Disse assim em inédita assertividade.
E a amou com carinho e calma e as mãos fortes de homem, sem deixar de
olhá-la nos olhos, sem lhe dar um beijo sequer. Soube ali, naquele quarto
decorado para uso comercial das putas e seus clientes, fitando os corpos dos
dois no espelho colado ao teto sob a cama redonda. Os corpos ainda arfavam
suados. Queria cochilar um pouco, se incomoda? pergunta Sérgio. Pode
dormir, vou tomar banho. Sérgio fecha os olhos e ela esquece do banho. Seu
corpo é bonito olhado pelo espelho. Ele se impõe, pontudo e rígido, ainda que
não exuberante: os seios pequenos, as pernas finas, a saboneteira
pronunciada. Os quadris não chegam a ser largos em si, mas são mais largos
que a cintura, e há algo que lhe diz: são ancas de mulher parideira. Abraça a
própria barriga. Está feito. Como raiz que agarra os sulcos da terra para
alimentar o tubérculo, a menina fincou-se em seus domínios. “Ana, vou derrubar
a porta se você não conseguir abrir!” Ante o desarrazoamento de Sérgio,
destranca a porta, e ele entra no banheiro sem ser chamado, enquanto ela senta no velho banco de plástico recebendo a ducha de água quente nas costas de olhos fechados. Sérgio ignora seu desejo de permanecer ali e a arrasta para o quarto, onde a ajuda a se vestir e a caminhar até o carro.
Trocam três palavras ao caminho do hospital. Ele está com as mãos trêmulas,
o olhar vidrado, talvez suando frio e essas manifestações irritam-na
profundamente. Típico de Sérgio, exaspera-se. Ele lhe chegou em meio a festa
da universidade com uma flor laranja nas mãos e pediu-lhe um beijo. Ana achou
ridículo, deu o beijo. Beijo delicado, ridículo como ele. O resto da noite
foi fricção de pele, pêlos, línguas e silêncio acalentado pelo som de banda de
maracatu. Ana aceitou o convite para darem um pulo em seu apartamento e na
verdade nunca mais saiu de lá. Passou todos os dias do primeiro ano
pensando: isso é nada. A despeito dos cálculos, não um ou dois, mas seis
anos: amor, afinal. Ana gosta de deitar em seu peito que cheira a cigarro e
pensar que ele não a abandonaria, gosta de pensar na primeira pessoa do plural, nossa vida, nosso jeito, nossa casa, nossas férias, nossas dívidas. Hoje
não consegue. Não há nós, só ela. Ali naquele momento o silêncio era crua
incomunicabilidade, ainda que ele escutasse solícito tudo que dissesse. Mas como
explicar essa imanência ruminante, esse mergulho sem fôlego, esse sutilíssimo
fluido animal?
Desde o início estava a menina. No primeiro mês constante bruma no ventre e
a sensação de que dissiparia a qualquer momento. Toda ida ao banheiro, um
presságio trágico que não se confirmava. Certa manhã acordou como se
estivesse numa jangada, sobrevivente de naufrágio sem esperanças de avistar
terra. Os enjoos vieram fortes, e por dois meses, Ana se arrependeu todos os
dias da prisão em que se colocou. O que fazer com esse torpor que toma o
corpo, essa fraqueza da mente? Arrastava-se aos lugares, comia por
obrigação, só acordava quando o corpo não suportava mais dormir. Acostumou-se
assim, nem lembrava do antes ou depois. Foi sem aviso e de repente que
acordou com apetite. A bruma no ventre espalhou-se por toda extensão de
Ana, corporificou árvore em longuíssimos ramos. Se antes era com muita
dificuldade que dizia para os outros “estou grávida”, como se ao contar, perigasse a menina sumir, os sinais do corpo regredindo subitamente, o resultado do exame,
erro tolerado pela ciência, dentro das porcentagens. Se antes excessivamente
abstrata a associação entre a bruma, os enjoos e uma criança, na medida em
que a barriga passou a ser o centro do corpo, assim também seios, quadris, e
braços progressivamente arredondando, sentiu-se a gravidez como fato exato:
sua própria vontade tornou-se algo redonda, lenta, plácida, como se ela fosse,
inteira, um útero que gesta. Acostumou-se de tal forma a ser útero que o lado
direito do cérebro esquecia daquele ser nas entranhas por dias, operando
indiferente aos chutes da menina, que começaram como curtas batidas de
asas e ao fim, já eram de fazer toda Ana perder o equilíbrio. Paradoxalmente
vivia, esquecendo da menina enquanto ia às compras do enxoval todo rosa; sofria tonturas e picos de falta de ar; arrumava-lhe o quarto; alimentava-lhe com a fome de besta bíblica, sentia seu corpo nas costelas querendo explodir, na pressão na pelve. Mesmo com todos os indícios de desmesurada presença, a sensação na gravidez após a bruma, como Ana mentalmente classificava, era de ordinária normalidade.
Simples como o dia que segue a noite, não havia mais outra Ana, só aquela
redonda, duas.
As consultas de pré-natal foram todas realizadas na clínica ginecológica perto
de seu trabalho. Sérgio ia a todas, mas ela não se ressentiria se ele faltasse a algumas, posto que não perderia novidades, as consultas eram sempre circulares em perguntas que variavam para gerar as mesmas repostas, como passou
esses dias? Apenas uma dor nas costas. Para isso, aqueles remédios que te
receitei na primeira consulta está bem? Onde estão os exames? Ah, tudo bem,
tudo bem. De surpreender porque você tem esse biotipo estreito, engordou
pouco, tome as vitaminas, cuide da saúde de seu bebê. Ou: o bebê engordou
um pouco mais agora, isso é inesperado, e você tão miúda, vamos ficar de
olho. Ou: você tem tendência a diabetes, isso é preocupante. Ou: trabalho
pelas manhãs na Secretaria de Saúde, posso marcar seu parto para o dia 13
de junho. “Verei então doutora, vou pensar...”
Saía das consultas e esquecia dos conselhos da médica, comprou as vitaminas
e nunca as tomou, adiou a decisão de marcar o parto, desistiu do pilates, do
programa nutricional, passou-se. Assistia ao desenrolar das semanas
contemplativa, distraída bordando temas infantis em fraldas de pano,
como a tia lhe ensinara. Com o avanço do seu estado, ver-se no espelho tinha um quê de humilhação, lembrando de sua condição de fêmea mamífera, enquanto todos à sua volta eram desodorante e drinques no happy hour. Ao final, saiu já de licença do trabalho, era um alívio todos concordarem que ela apenas esperasse. Nada a realizar, nada a decidir, e contudo, uma inquietude por no pôr-do-sol, rompantes de sair à
rua quando estava forte a chuva, de atirar livros ao excessivamente calmo
Sérgio quando este demorava de amarrar os sapatos; de cozinhar ao mesmo
tempo carne, peixe e frango como se preparasse os suprimentos para
alimentarem-se nos dias do juízo final. Mesmo confessando esses desejos para o marido e colegas, todos a perdoavam de qualquer loucura, e essa estranha condescendência a inquietava ainda mais.
Devia ter 32 semanas de gravidez quando recebera a visita da mãe de Sérgio,
de passagem pela capital. Ela perguntou: “e depois, como pensa que será?’
“Nunca me ocorreu pensar nisso, para ser sincera.” Ana percebe sua absoluta
incapacidade para prever ou mesmo imaginar o que será ter uma menina nos
braços. A conversa com a sogra abriu uma câmara escura, e o breu espalhava por toda
a parte. Respira fundo, não precisa pensar em mistérios insolúveis como o
depois. Também do parto mal lembrara durante toda a gestação. E se pensava
por descuido, era o cheiro de sangue que lhe vinha, maciço escuro
ocupando insuportavelmente tudo, até que a mente pegasse o
elevador e saltasse para vê-la recostada na cama da maternidade, bonito robe
azul de seda, a bebê sem rosto nos braços, flores de um Sérgio apaixonado.
Já são 11 horas da manhã quando chegam ao hospital, ao mesmo tempo em
que a dor muda de jeito. Agora é quente-pelando, uivo soturno e urgente. No
intervalo das dores, o espantoso nada. O calor vai embora e ela sente o ar-
condicionado exagerado do lugar. Espera resignada em uma cadeira, Sérgio
em pé com uma senha nas mãos. No seu imaginário chegaria ao hospital e
seria levada com urgência a alguma espécie de quarto; trariam compressas
quentes, lençóis limpos, e lhe diriam para ficar calma. A realidade é
inacreditável: quarenta minutos esperando com senha em mãos, depois a
senha aparece no painel e a atendente lhe pede: número de rg, cpf, endereço
completo, cartão do plano de saúde, assinatura de 03 vias de um formulário
qualquer. Senhora, precisa estar assinando isso também. Por favor, aguardem
que já serão chamados para a triagem. Você não vê que ela está em trabalho
de parto? Pergunta em voz alta Sérgio. Senhor, é o procedimento, por favor,
aponta para as cadeiras. Não, ela não sai do seu guichê para esperar de novo,
ela vai entrar para ser atendida, agora. Todos olham para Sérgio num misto de
reprovação e temor. Ridículo, pensa Ana. Está frio, muito frio. A dor, quando
vem, aquece, e agora não sabe se vem do ar-condicionado ou de dentro, sente
só uma tremedeira por dentro e vontade de não ser ela, de ser outra em seu
lugar. A desobediência de Sérgio gera efeitos: surgem duas enfermeiras e
levam-na para uma espécie de antessala, composta por maca, prateleira e
forte luz branca ocupando todo o espaço. Sérgio não pode ficar, foi chamado
para resolver alguma questão burocrática que foge ao entendimento de Ana.
Ao se ver só naquele cubículo, constata surpresa que gostaria de estar
em casa. São Francisquinho me proteja.
Seus pés que no início do verão doíam na areia quente, o caminho de areia
quente entre ela e o mar, e pensava: a sola já fica grossa e essa dor não
durará. Na verdade, quando criança sua tia de olhos bondosos lhe disse que
Deus só dá a dor que a gente pode suportar. Ana acreditou inteira. Quando
criança o verão era longo engrossar da sola dos pés. O inverno, eterno quintal na casa da tia no sertão. Os dois cenários de sua infância eram tão naturalmente
complementares que Ana nunca sequer pensou que haveria outra forma de
ser. São Francisco o mais próximo da grandeza de Deus, e na cabeça da
menina confundiam-se. Era Ele quem ensinava que pão-durismo é pecado,
dinheiro é sujo, lava a mão menina, dinheiro é sujo, os passarinhos são filhos
de Deus, e não se pode negar comida e água a pedinte, os pedintes sabiam
disso e reclamavam se não tinha sobrado almoço, mas ganhavam pão, e Ana
tinha medo de entregar comida aos pedintes, que eles percebessem que já
tinham comido o peito e as coxas do frango, que ali era só resto de asa e pés,
e pensava também se galinha não podia, por extensão, ser considerada tipo de
passarinho, se São Francisco não zangaria em torcerem o pescoço da galinha,
fazerem-na sangrar, depená-la, cortá-la toda para cozinhar. Ana não sabia e às vezes tinha pena de comer o frango ou o bode, mas aí tinha fome e comia, e pedia perdão a São Francisco. Pensava: cada um tem a dor que pode suportar, e ia brincar no quintal.
Sérgio tem de ir assinar papéis do plano de saúde, são muitos os formulários. Ana espera na pequena antessala, está em pé, escorando-se nas paredes, gemendo, até que a enfermeira lhe diz que deite, que ela vai entrar no centro cirúrgico em poucos minutos, que a médica de plantão já vem examiná-la. Mesmo sem vontade de deitar, a visível experiência da enfermeira em partos vence a vontade de protestar. Assim que deita na maca, a profissional fura seu braço sem cerimônias, um esparadrapo para fixar a agulha que passa “Sorinho para facilitar o parto, viu querida, procedimento
padrão”. A dor aumenta e Sérgio ainda não está. Ana deitada tem receio de levantar e
ser repreendida pela médica que não chega. Longos minutos nesse dilema e
está quase desobedecendo a determinação quando chega um médico, muito
jovem. Não seria uma médica doutor? Ana quer acreditar que há uma lógica
que a beneficia nos procedimentos. Ela está ocupada, vim adiantar, ele está
cansado e distraído, mas a voz é cordial. Está sem calcinha? O médico coloca
luvas rapidamente e faz um exame de toque ginecológico, sem pedir licença, sem cobrir suas pernas com um lençol. Ana fecha os olhos e embora em nenhum segundo
desconfie do olhar clínico do médico sente-se inadequadamente exposta, e censura-se internamente: devo suportar. Tudo dura no máximo um minuto.
“Olha, evoluiu pouco, é provável que vá ser
cesárea. Se você quiser fazer comigo, adiantamos isso, eu já
aproveito que o anestesista acabou de chegar, em duas horas você estará com o bebê nos braços. Insistir provavelmente é só adiar a cirurgia”.
“Eu insisto”, responde com firmeza, sem nem saber o porquê.
“Você que sabe”, a resposta irritada assusta Ana, que esperava um retorno protocolar. Fica sozinha novamente, a enfermeira volta com outra, elas vieram fazer-lhe depilação na virilha. Fica atônita com as duas senhoras raspando-lhe os pêlos com lâminas que irritam sua pele enquanto permanece inerte na maca, jamais imaginaria tamanho pudor por parte de médicos: querem-na impúbere. Subitamente perde o ânimo e temvontade de pedir que venha o anestesista. Por pura inércia mantém-se calada.
Apenas deseja não responder a mais perguntas, fixa o olhar no vazio e espera
um milagre.
Estão no centro cirúrgico, foi transferida em cadeira de rodas, aliviada por
Sérgio, resolvidas as burocracias, tê-la encontrado no elevador. Cirurgias e
partos ocorrem no subsolo, entre paredes que poderiam separar abas de
trabalho numa repartição pública. Neste quarto que lhes cabe há: a maca
ocupando o centro do espaço, uma inusitada bola de plástico em cima da única
cadeira e uma mesa de apoio para instrumentos cirúrgicos. O chão é
limpíssimo e o silêncio empresta tranquilidade ao momento. Na parede, um
cartaz de campanha do governo com a atriz lindamente recostada na poltrona,
amamentando seu bebê. Sérgio fecha a pesada cortina que faz as vezes de
porta e, por alguns minutos, são só eles dois novamente. Pela primeira vez no
dia, entreolham-se: chegamos até aqui, Ana, e você sequer amoleceu – Sérgio
evola paz. “Quantas horas se passaram? Há quanto tempo estamos nesse labirinto?” Ana diz se esforçando para sorrir.
“Quatro longas horas…quem me acalma é você. E como está bela, no dia em que vamos conhecer nossa filha.” Sérgio beija sua testa, como estava precisando de um gesto ridículo de amor.
A médica chega com duas enfermeiras e o rosto culpado como se de sua presença dependessem os espasmos do corpo de Ana: Mamãe quis ter normal? Ana só tem força
para afirmar com o movimento da cabeça. Seu corpo está demorando um pouco mas vamos fazer todo o possível, está certo?
Ana quer responder à médica, mas as lágrimas são fartas e inevitáveis:
-Doutora, acho que minha mão foi amputada, não sinto a mão. Fica calma, estou
aqui amor, segurando sua mão. É Sérgio quem responde. A médica coloca as
luvas, diligencia junto às enfermeiras, solicita instrumentos.
“Quero parar. Sentir! Não quero sentir mais nada! Onde está o anestesista? Manda
trazer, doutora, por favor.”
“ O anestesista está atendendo outra mãezinha, se der
certo ele vem, vamos prosseguir, queremos
que isso acabe logo, não queremos?” O timbre polido da médica faz Ana chorar
mais. As lágrimas ajudam a sensibilidade, e percebe a mão de Sérgio segurando a sua. A dele está fria. Desistiu da anestesia. “Vou morrer.”
O intervalo entre as dores é mais curto
que sua respiração. Se conseguisse formular a frase, seria: vou morrer por
esquecer de respirar. A única luz na mente é que está perto de acabar, a
dor. Sabe que o limite está ali, diante dela. Sente o peso do corpo da menina
pressionando os ossos da pelve. É dominada pelo pensamento de que já irá
conhecê-la, sua carne e espelho, e então tudo estará acabado. Fecha os olhos
com força, tem medo das trevas, de sua fraqueza, mas já desistiu de qualquer
fuga, já aceitou toda a dor, não pode ser pior, essa é sua força, sabe o caminho
do abismo e marcha a passos largos, sem distrações, tédio ou horror, apenas
aceita esse momento de vida vivida consumada como matéria de sonho. Abre
os olhos com tímida coragem e a luz do teto é tão forte que lhe cega. A
médica se dirige a Ana: vou fazer um pique, um corte no períneo, vai facilitar o
parto. O tom da médica é algo maternal. Não! Ana não sabe se falou baixo ou
gritando, apenas reagiu à ameaça. Escute, e agora fala baixo curvando o corpo
para encontrar os olhos na altura de Ana, como que para uma criança. É
melhor o corte para não lacerar de qualquer jeito. Depois damos o ponto e você
fica apertadinha para o marido, como uma adolescente - disse levantando de
súbito com ar risonho, e Ana, que sempre teve capacidade de adaptar-se aos
diferentes humores, não conseguiu sequer entender o que seria amável na
frase. Não queria entender: não me corta! Você está muito exaltada Ana, e
olhando para as enfermeiras: segurem ela. Não me corta! Não me corta! Não
me corta! É crescente rugido o grito de Ana. Chega, não cortem! Agora é
Sérgio que grita, nervoso. Se o senhor atrapalhar teremos de retirá-lo da sala.
O tom ríspido informa que Sérgio saiu do roteiro esperado. Ora, mas se ela não
quer, reclama. Senhor, não temos tempo para isso, o bebê está para sair e eu
preciso realizar o procedimento, para evitar lacerações. Já está para nascer
doutora. Precisa mesmo? Eu tenho dez anos de parto senhor, pode ficar
tranquilo, estou cansada de escutar desculpas depois, na hora elas ficam
assim.- responde a médica, dando por encerrada a conversa.
Sérgio olha para Ana, aturdido. Ela fecha os olhos, não pode ver pelos olhos
dele. Ouve a médica falar em anestesia local. Contudo sente cada milímetro da
pele rasgada pela lâmina afiada, a tessitura do sexo desfiada pelo corte
rápido, ou será que inventa para não ficar sozinha enquanto fazem o que
fazem usando luvas? Será que sente o fluxo de sangue quente abundante do
corte, ou é a mente pregando peça, distraindo para que ela esqueça isso que é
maior que dor, intenso sofrimento impotente, a extrema humilhação de ser
violada? Compreende que nada que dissesse faria efeito.
A médica continua a falar coisas, dar ordens, as enfermeiras ajudam a manter
suas pernas encaixadas na posição ginecológica. Tem vontade de mordê-la,
tem vontade de xingar as enfermeiras todas. E então um impulso centrífugo, do
diafragma para o ventre, como se estivesse macerando tempero no pilão, e
quem está em punho com o machado é Ana, é dela que vem a força, tinham
lhe dito que seria como fazer cocô e ela pensa se é deficiência da linguagem,
ingenuidade ou maldade, pois em nada, absolutamente nada, a vontade se
assemelha a fazer cocô. Sente sangue sofrido e simultaneamente certo alívio
em macerar-se. Mistério máximo, e agora sim, agora como enorme pedra de
gelo sob as costas, o medo: não vou conseguir, não quero conseguir, não sei,
não quero. O que fazer com a menina que quer nascer, a menina que deságua,
essa menina que ela perde?
Mais uma vontade de empurrar e por segundos ela é apenas olhos contraídos
e o grito feio que guardou dentro de si para romper, explodir, expulsar toda
mágoa, todo pudor. A força se esvai e ela novamente está no controle,
completamente lúcida, olha para a cortina devassada que faz às vezes de porta
da sala cirúrgica: no momento Sérgio está retraído no canto da sala, elas
tiraram ele de perto. Aproveita a distração da médica que é interrompida para
assinar um formulário de outro caso qualquer, com a consequente
desmobilização das enfermeiras que a acompanham. Espera uma onda de
força que vem, que ela precisa acompanhar e empurrar, mas não faz com tanta
vontade, não pode ser daquele jeito. A médica ainda está distraída com o
formulário. Levanta com força da maca e empurra o corpo como se o corpo e
ela fossem duas matérias distintas, guia os pés para fora da sala, a agulha
presa ao braço descola-se e ela flutua alguns passos pelo corredor Moça!
Moça! Muitos braços seguram-na com o intento de devolverem-na para a
maca, mas já é tarde. Desistiu de si, quer esquecer, afunda-se, reparte-se,
deixa o corpo, está só e isso é bom, o último instante em que é uma, o último
instante de solidão é seu, não precisa de ninguém, é esquecer, esquecer, olhos
fechados, não escuta, o corpo treme, as pernas, como estão as pernas, não
sabe, abre os olhos, e vê a luz meio azul, não sente mais dor, não sabe o que
sente, deve ser por que está morta, sem laços que enforquem, alheia ao
decoro. Está saindo! A cabeça, já saiu! Deita! Deita! Antes pareceria ordem, mas agora ela sabe que lhe suplicam de joelhos: deita! Parece haver instante de breve insanidade coletiva incitada pelo ímpeto terrível de Ana. Ela deixa seu corpo escorregar pela parede mas não deita, abre os olhos e enxerga as
pessoas à volta que desabam em medo, e repulsa, esmagados por sua
verdade, os gemidos intensos e estridentes que produz e que não são
linguagem, mas sinais sucessivos e veementes de que é bicho, de que a
menina virá como filhote, o corpo todo convulso de dor de parto, apenas dor de
parto, as mãos crispadas tentando reter o ar que lhe falta. Desenfreada
permanece de cócoras, ampara o milagre com as próprias mãos, e sua menina
desliza alheia a toda violência que a precedeu. Não há mais dor, são cinco
dedinhos em cada pequena mão, e os olhos seus e os da menina se
encontram, vê menina pela primeira vez e nem quase respira, respira fundo
todo o ar do mundo, suspira a menina, soletra seu nome no dia alto, os cinco
dedinhos da mão esquerda agarram seu indicador da mão direita, a menina
está enlaçada em seus braços, o corpo molhado, quente, presente de lã e
bordado, ela não chora mas tudo vê, os lábios tremem de leve, e a menina só
podia ter esse rosto de orvalho, a menina agora é uma verdade escrita em
sânscrito nas bibliotecas públicas, é novo mundo que se anuncia, a primeira
aurora da primeira festa da primeira mãe do primeiro poema da primeira
música do primeiro trovador da primeira cidade da primeira, primeiríssima
primavera. A menina nasce como peixe dourado que antes nadava em círculos
e ao emergir para ver a lua cheia encanta os pescadores sagrados, refunda o
evangelho, invoca palmas, pipoca jogada com força para o alto, a menina é
dom, a flor prometida, a prenda imensa, e Ana é Deus em sua infinita
felicidade, tudo sobra, tudo se derrama para fora, tudo é excesso exuberante,
nesse íntimo instante de êxtase.
Rapidamente os braços tomam-lhe a menina para devolvê-la poucos minutos
depois, enrolada em manta, é louca, é doida, no chão, porque fez isso, o que
foi que pensou, quer dizer, não pensou, parecia um bicho, se você se visse,
dando esse espetáculo, como índia, para todos verem, os outros pais, as
outras mãezinhas...ouvia as ruminações completamente indiferente. Se Ana se
visse agora, se surpreenderia com o rosto lasso, intumescido de fêmea, a terra quando
finda a erupção. Tem seu momento: por alguns minutos, todos respeitam o
instinto de lamber a cria. A incapacidade humana para reter o momento do
êxtase é lei conhecida da natureza, e mesmo Ana, recém-parida após alguns
minutos, acostuma-se com o milagre. De repente a vida é essa e segue, ainda
que o tempo fique estranho. Pensa que quando os minutos escorrem
estranhos, a matéria vida está em plena atividade. Ao declínio orgânico do
êxtase soma-se o tempo maquinal dos funcionários do hospital. É do fogo
ao frio que Ana desce porque lhe tiram a menina novamente dos braços para
procedimentos que ela desconhece e ninguém explica. Sérgio acompanha a
menina com recomendação de que não lhe deixem sair da vista e Ana percebe
quão exausta está. Aceita resignada o vazio nos braços por algumas horas
enquanto a bebê está no berçário. Ficará em observação e daqui a pouco
retorna, mãezinha – a enfermeira que lhe fala recobrou o brio, e no tom infantil parece desejar a si e Ana esquecidas da experiência, e assim Ana seria mãe como se nunca houvesse parido assim, e ambas sabem que isso é perfeitamente possível. Sérgio diz: nossa filhinha dorme como anjo, nem percebe onde está. Ana fecha os olhos e repete a imagem da menina dormindo em paz, esquecida da proteção dos braços da mãe.
Dorme sem sonhos.

